O limite entre o afeto e a ilusão

Por Eliane Kilian da Silva

Devemos ter cuidado ao manifestarmos os nossos pensamentos nas Redes Sociais, porque muitas vezes podemos interferir nos negócios de alguém que não está mal intencionado, apenas sobrevive daquilo que no momento está sendo criticado de modo não tão racional.

As bonecas Reborn são, sem dúvida, verdadeiras obras de arte. Sua semelhança com bebês reais impressiona e desperta emoções intensas em quem as vê ou as segura no colo. Não sou contra a sua comercialização, pelo contrário, reconheço o talento dos artesãos que as produzem e compreendo o valor terapêutico que elas podem ter para algumas pessoas. Também, quanto à sua contribuição na educação, pois podem ser utilizadas para aulas práticas tanto de enfermagem, como de medicina, entre outros cursos, devido à sua semelhança com o ser humano facilitando os estudos.
No entanto, a minha inquietação surge quando observo o limite tênue sendo ultrapassado: o de tratar um objeto inanimado como se fosse um ser vivo.

Existe uma diferença clara entre afeto e ilusão. O afeto pode estar presente no cuidado com a boneca, na lembrança de um filho que cresceu ou partiu, no conforto que ela pode oferecer em momentos de luto ou solidão. Mas, referente à ilusão quando se transforma em negação da realidade, pode se tornar perigosa. Humanizar a boneca a ponto de atribuir-lhe sentimentos, personalidade e direitos que cabem apenas a um ser humano pode sinalizar um afastamento do real, ou seja, uma fuga emocional que precisa ser observada com atenção.

Vivemos em uma sociedade que, muitas vezes, busca no consumo e na fantasia uma forma de preencher alguns vazios internos. As Reborn, por serem tão realistas, podem se tornar um espelho dessas carências emocionais. Há quem leve as suas bonecas para passear em carrinhos, compre roupas, fraldas, mamadeiras e trate como um bebê de verdade, ao ponto de substituir o convívio social ou familiar por esse “relacionamento” com o objeto.

É preciso acolher as dores que levam alguém a esse ponto, sim, mas também é necessário refletir: até que ponto isso é saudável? Em que momento o uso simbólico da boneca se torna um bloqueio para lidar com a realidade e com os vínculos verdadeiros? E prestar ajuda e solidariedade a essas pessoas.

Bonecas são objetos, são inanimadas, artificiais, ainda que perfeitas em sua forma. Não respiram, não crescem, não sofrem, não amam. Atribuir a elas o que é próprio da condição humana é projetar em algo externo aquilo que muitas vezes precisamos enfrentar dentro de nós mesmos.
Enquanto bonecas são tratadas como bebês, há crianças reais esperando por amor

Enquanto tantas pessoas depositam seu afeto e cuidado em bonecas que, por mais realistas que sejam, continuam sendo objetos inanimados, há milhares de crianças reais, com coração que bate dentro do peito, sonhos que crescem e lágrimas que caem, porém vivendo em situação de abandono. Crianças órfãs, rejeitadas ou esquecidas, espalhadas por orfanatos e abrigos, ou perambulando pelas ruas das grandes cidades, aguardam, silenciosamente, por um olhar, por um colo, uma chance de pertencer a algum lugar que possam chamar de lar.

Elas não têm traços perfeitos esculpidos por artistas. Suas roupas estão muitas vezes gastas, seus rostos marcados pela ausência de carinho, e sua infância interrompida pela indiferença de uma sociedade que prioriza o que é fabricado ao invés do que é humano. São seres vivos, pulsantes, cheios de histórias para contar, só que quase ninguém para para ouví-las e vê-las como gente.

É doloroso pensar que, em um mundo com tantas crianças reais em busca de cuidado, algumas pessoas escolhem suprir suas carências emocionais investindo tempo, energia e dinheiro em bonecas que não precisam de amor, apenas de manutenção.

Não se trata de negar a importância de objetos simbólicos ou terapêuticos, mas de provocar uma reflexão: e se uma parte desse cuidado fosse direcionada para crianças de verdade? Quantas vidas poderiam ser transformadas se o mesmo zelo dispensado às Reborns fosse estendido às meninas e meninos que esperam, todos os dias, por um gesto de acolhimento?

Adotar, apadrinhar, visitar, doar tempo e afeto: tudo isso é possível. A escolha de amar pode e deve ser direcionada àqueles que realmente precisam. Porque nenhuma boneca, por mais perfeita que seja, jamais poderá substituir o brilho nos olhos de uma criança que descobre, enfim, que é amada.

Não se trata de julgar a comercilaização de Bebê Reborn, mas de observar com empatia e discernimento o seu uso. Em tempos de tanta solidão e desencontro, é essencial que possamos encontrar formas de afeto que nos conectem à vida real: aquela feita de imperfeições, sim, mas também de encontros, de crescimento e de verdade. Bonecas Reborn podem ser belas companhias simbólicas, desde que não nos afastem do essencial: da vida pulsando fora da fantasia.

As opiniões expressas neste texto são de minha exclusiva responsabilidade.
E refletem, exclusivamente, a minha visão sobre o tema: Bebê Reborn.
A autora

📷 Redes Sociais